Rubens Amador
Fatos nobres que presenciei
Rubens Amador
Jornalista
A nobreza que me comove é sempre a do gesto, quase nunca a do trono. Esta me extasia apenas por sua heráldica magnificência. Sempre que "via", por exemplo, a rainha da Inglaterra naquela carruagem, nas proximidades de Buckingham, acompanhada do príncipe consorte - ou com sorte? -, confesso-lhes que me deixava transportar à infância, revivendo as histórias bonitas que me contavam. Pelo menos era assim no meu tempo, um pouco antes do Fantasma Voador e do Lil Abner.
Mas a nobreza que me toca mesmo e sempre, por exemplo, é a do mendigo esfarrapado que pede um prato de comida, com dignidade. Uma nobreza sem armas ou brasões, sem passado, talvez sem futuro, que apenas emerge do âmago de uma pessoa, graciosamente, sem compromissos, como o luar, como o vento, como a chuva generosa. Antes de se tratar de um posicionamento social ou histórico, é tão somente algo como a água fresca de uma cacimba que sacia a sede do viandante.
Essas pretensiosas colocações vêm a propósito de dois fatos que presenciei. A primeira foi prestada pela multinacional Kibon. A outra presenciei há muitos anos passados, ali, defronte a banca do peixe no nosso Mercado Público. Em Pelotas se deu um apagão enorme, que durou dias, quando algumas torres de energia elétrica caíram ante fortes ventos. A CEEE informava que seriam cinco dias no mínimo sem luz. O que de fato aconteceu naqueles distantes dias de 1980. A grande empresa multinacional de sorvetes e assemelhados - ainda aí - mandou viaturas suas, com pessoal seu, dar às crianças e adultos do núcleo da Cohabpel - fartamente - sorvetes, picolés e caros produtos que ofereciam, tudo graciosamente, a fim de evitar ter de deitar fora os seus produtos ante o degelo irreversível que os mesmos sofreriam. Todos podem imaginar a festa que foi a "sorvetada"oferecida pela referida firma, que se encarregou inclusive da distribuição para as crianças e suas famílias como disse.
O outro fato marcante para mim foi em tempo mais recuado, no ano de 1965, e que haverá muitas pessoas que se lembrarão de ambos acontecimentos aqui comentados. Naquele ano, e como talvez jamais tenha se repetido semelhante fenômeno, a praia do Laranjal foi invadida por um gigantesco cardume de camarões. Naquele ano deu camarão até em sarjeta, para usar uma expressão tão exagerada quanto a quantidade de crustáceos que aconteceu. Muitos haverão de lembrar. Deve haver registros nos clubes da simpática praia. Eles pulavam na beira da praia e o seu impacto no corpo da gente chegava a doer, dada a densidade dos cardumes.
Pois bem, eu vi dois caminhões enormes carregados com camarões até em cima, e dois cidadãos em cada veículo, serem esvaziados em pouco tempo por dezenas de pessoas que se aglutinavam em torno dos caminhões, colocando nos bolsos - sim, nos bolsos -, em latas, caixas de papelão, sacos plásticos e até em chapéus de homem. Eu vi, repito (e muitos também devem ter visto), levarem os camarões que generosamente eram servidos com pás. Foram dois gestos extraordinários de pura generosidade, de solidariedade, e eivados de sadio desinteresse comercial ante aquela abundância que Deus ofereceu ao povo pelotense naquele ano de 1965, que nunca mais se repetiu e talvez jamais se repita.
São pequenos fatos como esses que nos mostram que nunca devemos perder a esperança na humanidade. Para mim, os fatos citados e acontecidos, que lembram parábolas bíblicas, reforçam minha crença pessoal que, apesar de todas as mazelas, o apertar de mãos entre os que têm muito a ponto de circunstancialmente poderem deitar fora e os que nada têm pode se dar na prática, ensejando dessa forma uma dispersão maior da fartura e da consequente felicidade que todos aspiramos neste planeta.
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